Por Isabel Nogueira*
Pretendo trazer neste texto alguns conceitos que venho articulando e que percebo como importantes não apenas para meu trabalho, mas para o desenvolvimento de propostas para uma epistemologia feminista, na concepção de Margareth Rago.
Tendo buscado articular pesquisa, reflexão e prática artística dentro das pesquisas qualitativas, pois, como coloca Marília Velardi, a pesquisa está diretamente relacionada com a pessoa que a realiza e é impossível pensar o objeto sem a total implicação da/o sujeita/o que o observa; uma vez que o olhar nasce da relação da pessoa que pesquisa com o seu tema.
Assim, busco me entender como pesquisadora não-neutra, participante do campo, articulada por ele e articuladora também de alguns aspectos dentro dele.
Há alguns anos os trabalhos colaborativos têm feito parte dos projetos que desenvolvo, que acontecem a partir destes e me dobram, me movem e me instigam – como colocado por Laila Rosa e por mim em artigo anterior (leia aqui).
Este artigo é uma continuidade do que venho pensando sobre trabalhos colaborativos entre mulheres, e como estes podem alavancar, incentivar e promover processos de empoderamento e novas perspectivas epistemológicas.
Vou começar de um ponto que não é o começo, porque penso que as coisas ecoam, ressoam e são retornáveis, sempre de novas formas, em algo que talvez não tenha jeito ou forma definida.
Exploratório em sua própria maneira de existir.
Começo pela dissonância: Renata Roman organiza, junto com Natacha Maurer, o projeto Dissonantes, que consiste em “uma série de apresentações de música experimental com o intuito de visibilizar a produção de mulheres. O projeto surgiu em dezembro de 2015, como resposta à pergunta “onde estão as mulheres na cena experimental?””
Um dia de março de 2016, disse à Renata que gostaria de tocar no projeto, e ela me instigou a pensar em uma companheira para tocar ali, uma mulher: e desta ideia nasceu o Strana Lektiri , meu duo com Leandra Lambert.
Eu tinha bastante consciência da importância de trabalhos desenvolvidos por mulheres e em colaboração com outras mulheres e já tinha realizado trabalhos assim em pesquisa e organização de eventos, mas o incentivo de Renata foi fundamental para que estas ideias chegassem também na minha prática artística.
Na divulgação do workshop sobre mesa de som que Julia Teles ministrou no mesmo projeto Dissonantes no último dia 05 de maio, o release diz que: “nesse encontro, convidamos improvisadoras, compositoras e/ou instrumentistas que queiram conhecer melhor como funciona uma mesa de som e alguns princípios básicos de áudio, para otimizar o processo de passar o som em apresentações, além de permitir maior controle do resultado final. Serão também mostrados alguns tipos de microfone e discutidas as diferenças entre os tipos de instrumentos e emissões sonoras. A ideia é que seja um encontro prático, onde a gente possa explorar algumas possibilidades técnicas. (quem puder levar seu instrumento ou equipamento, é bem-vindo!)”.
Estes dois elementos relacionados me recordaram diretamente do texto de Freida Abtan:
“Nenhuma das meninas que eu conheci quando adolescente ensinou umas às outras como fazer coisas técnicas. Nós lemos livros e discutimos o mundo, assistimos a filmes, conversamos sobre nossas famílias, nossos sentimentos, nossos pensamentos, mas nós não estávamos realmente envolvidas em compartilhar nossas habilidades, a menos que estas estivessem relacionadas à escola. Quando eu queria participar das experimentações musicais dos meus amigos, eu estava participando de uma rede de compartilhamento de habilidades que, para eles, sempre tinha sido masculina. (…) Agora, quando as pessoas me perguntam como fazer com que mais mulheres estejam envolvidas na cultura da música eletrônica, eu tenho duas respostas: compartilhe suas habilidades com elas, mas também compartilhe suas amigas com elas. Lembre-se que a cultura é algo que construímos juntas, fazendo e ensinando umas às outras como fazer. Organize uma oficina. Role alguns shows. Promovam o trabalho umas das outras. Abram seus arquivos e mostrem umas às outras o que vocês estão fazendo e, muito mais importante, mostrem como vocês estão fazendo. Ajudem umas às outras à lançar sua arte para o mundo. Não se preocupem se elas ainda não sabem como se envolver, nós estamos todas construindo o futuro da música juntas.”
Ao mesmo tempo, as observações de Abtan me chamam a atenção para as teias construídas à distância, muitas delas por meio da internet – e Donna Haraway fala do quanto a tecnologia nos constitui, mesmo muito antes da consciência do algoritmo nosso de cada dia.
Segundo Carolina Cantarino, “o ciborgue, um personagem recorrente na ficção científica contemporânea, é utilizado como metáfora para a crítica da identidade em favor das diferenças e para reivindicar as possibilidades de uma apropriação politicamente responsável da ciência e da tecnologia” (Fonte: http://feminismo.org.br/donna-haraway-e-o-manifesto-ciborgue/3123/).
Na sua teoria ciborgue, Donna Haraway fala da indissociabilidade de nossos corpos e pensamentos com a tecnologia, e como é já impossível falar de uma existência descolada da tecnologia.
O feminismo vem então como um ciberfeminismo alimentado, transformado e atuante no campo das cibercomunicações, proporcionando encontros inusitados e ao mesmo tempo fortalecedores.
Um exemplo importante disso, para mim, é a rede Female Pressure, que neste ano completa 20 anos. A informação do site diz que:
“A Female Pressure é uma rede internacional de artistas mulheres, transgêneras e não-binárias nos campos da música eletrônica e das artes digitais, fundada por Electric Indigo. De musicistas, compositoras e DJs à artistas visuais, trabalhadoras culturais e pesquisadoras, constitui-se em um repositório mundial que pode ser pesquisado utilizando critérios como localização, profissão, estilo ou nome. “Por que há tão poucas mulheres ativas na cena da música eletrônica?” – cada uma de nós já ouviu essa pergunta milhares de vezes … Aqui está a resposta: não se trata de quantas somos, mas de como e se nós somos reconhecidas.”
Percebo que a Female Pressure contribui para uma perspectiva artivista, fazendo uma conexão profunda entre arte e vida, concordando com o que Miguel Chaia observa quando refere: “percebe-se no artivismo um realismo político que busca o sucesso dos objetivos seja no microcosmo (quarteirão ou bairro), seja no macrocosmo (público ampliado, áreas internacionais ou Internet)”.
Entendo que, entre diversos outros, se inserem também nesta perspectiva os trabalhos de Ximena Alarcón sobre as vozes e memórias de mulheres colombianas, e as coletâneas Feminoise Latinoamerica e Feminoise Cantautoras, lançadas pelo selo Sisters Triangla e organizadas por Maia Koenig, compositora, performer e artivista argentina.
Ximena trabalha a partir do conceito de escuta profunda, desenvolvido por Pauline Oliveros, uma ideia que para mim é fundamental, tendo em vista as conexões e desconstruções que proporciona.
Maia, por sua vez, pensa o artivismo para além do sonoro, pensando em oficinas, atuação política, questionamentos sobre sexualidade, pornografia, indústria e práticas cotidianas.
As coletâneas têm contribuído para visibilizar a produção musical de mulheres e promover trabalhos colaborativos, principalmente no campo da música experimental.
Penso que o artivismo pode estar também no processo de subverter e criar linguagens – causar estranhamentos a partir do próprio processo de desterritorialização da linguagem e, através desta possibilidade, pensar os seus (des) entendimentos cotidianos: considerando que alguém pode pensar que entende quem está a seu lado, mas que sequer existe uma escuta.
Cotidianamente, os processos de apagamento e silenciamento de vozes e corpos são contínuos – os corpos que importam, e os corpos que não importam, como refere Judith Butler.
Pensar que, ao acionar palavras e linguagens, estas vêm movidas por minhas memórias e conceitos, que dialogam diretamente com aqueles da pessoa que ouve, e que estes e aqueles muito provavelmente não coincidem.
Posso pensar que o ruído/barulho/ruído evidencia o incômodo e o desterritório na comunicação – se transformando, por outra parte, ele mesmo em um novo território e gerando, como elemento desestabilizador, processos dialéticos entre a aceitação e rejeição, como coloca Lilian Campesato.
Por todos os incômodos e plurissignificados da comunicação e das dinâmicas cotidianas, penso na música de barulho/ruído como uma música sem trégua, como uma ranhura que discorda do placebo da concordância – e artivista pela sustentação do incômodo contínuo do des-estável, do desterritório.
Ao mesmo tempo, a perspectiva artivista se relaciona com os processos de valorização da produção sonora e artística de mulheres, posto que estes precisam necessariamente ser críticos e autocríticos, uma vez que existe a contínua necessidade de desconstrução de padrões apreendidos, tanto com relação à si mesmas como à outras mulheres.
Não raras vezes, os grupos e pessoas atuam como reprodutores de estruturas de poder, apenas substituindo a figura opressora de um homem pela de uma ou várias mulheres, configurando o que Margareth Rago chama de as mulheres cordiais.
A pesquisa artística feminista precisa promover e priorizar trabalhos que guardem relações estreitas entre a prática e a teoria, que sejam desenvolvidos em teia e baseados no diálogo, na descentralização dos processos, na compreensão do que já foi produzido sobre o tema, na concepção de um olhar histórico baseado na identificação de múltiplas atrizes sociais e principalmente na geração de um sentimento de empoderamento, confiança e pertencimento para cada uma das pessoas dos grupos.
Nestas práticas, os processos são tão ou mais importantes do que os produtos.
Uma revisão intensa e contínua sobre a coerência destas práticas se faz necessária, tendo em vista a geração de respeito e empoderamento não apenas no âmbito interno do grupo, mas na relação com outros grupos e coletivos com os quais se pretende ou deseja dialogar.
Dialogar, incentivar, perguntar, compartilhar, colaborar, ouvir, nas relações de quaisquer ciber-níveis, são elementos essenciais para as práticas feministas artivistas e colaborativas.
A linguagem criada para nos oprimir, silenciar e invisibilizar não é aquela que vai nos libertar, por isto a reinvenção é necessária e urgente.
Para saber mais:
- Margareth Rago: http://historiacultural.mpbnet.com.br/feminismo/Feminismo_e_subjetividade.pdf
- Projeto Dissonantes: https://www.facebook.com/dissonantes.sp/
- Freida Abtan: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/07494467.2016.1176764?src=recsys
- Donna Haraway: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
- Female Pressure: http://www.femalepressure.net/
- Ximena Alarcon: http://ximenaalarcon.net/
- Maia Koenig: https://sisterstriangla.bandcamp.com/
- Judith Butler: http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/9979
- Lilian Campesato: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/27/27157/tde-26012013-174403/pt-br.php
*Isabel Nogueira é musicóloga, compositora-performer, pesquisadora, doutora em Musicologia pela Universidade Autônoma de Madri, Espanha e Bacharel em Piano pela UFPel. Professora do Departamento de Música do Instituto de Artes da UFRGS, do PPGMUS / UFRGS e do Programa de Pós Graduação – Mestrado e Doutorado em Memória Social e Patrimônio Cultural (UFPel).
** Texto gentilmente cedido pela autora para publicação na Rede Digitalia e originalmente publicado na Linda – revista sobre cultura eletroacústica.